É noite na capital paulista. No segundo andar do prédio da Unibes Cultural, o professor Fabio Maleronka se apresenta para os novos alunos, sentados em cadeiras alinhadas em um semicírculo. Está se iniciando um curso sobre programação cultural contemporânea e curadoria.Os ouvintes eram pessoas com diferentes atividades, mas dispostas a participar de um debate sobre os caminhos da cultura em um país que passa por uma forte crise. Mas não de identidade. A identidade, afinal, sempre se reflete na própria cultura. Si hay cultura, hay identidad.
Mais do que em um amplo edifício, o seu ministério está nas ruas, nos fenômenos de urbanização, no Carnaval, no axé que se transforma, no ritmo e nas produções que vão em ondas, como diria Lulu Santos. Na raiz.
Da ampla janela da sala, se via os carros cortando a avenida Dr. Arnaldo, como se seus motoristas conversassem com as pessoas lá dentro, fazendo, de certa forma, parte das reflexões. Elas – as reflexões – eram, afinal, sobre a sociedade como um todo, sobre o momento que vivemos.
Os movimentos sincrônicos dos veículos e o ritmo dos pneus no asfalto mostravam o equilíbrio e a harmonia da própria vida urbana. Como uma dança. Uma sinfonia. Um caos que se organiza e que só por existir já pulsa cultura.
“O Dono da Voz”
Um executivo, em seu SUV, poderia estar ouvindo John Coltrane. A enfermeira que voltou do plantão, lá no HC, poderia estar relaxando ao som de Céu. A adolescente no ponto de ônibus, indo para casa na periferia, estava escutando Anitta no spotify. Ou assistindo a uma série no celular.
Todos se reconhecendo por meio da música ou da arte, identificando seu espaço dentro de uma sociedade, excludente até certo ponto. Quando o tema é cultura, ela é democrática.
Na tela, no fundo da sala, Maleronka apresenta um vídeo de André Midani, produtor falecido em junho último, que marcou época como importante criador de novas tendências culturais e gêneros musicais como a Bossa Nova. É ele o personagem a que Chico Buarque se refere na música “A Voz do Dono e o Dono da Voz.”
Em determindo momento, Midani coloca em pauta um debate sobre o quanto a cultura pode ser valorizada em um país, como o Brasil, onde há carência em áreas teoricamente mais urgentes, como educação e saúde.
A precariedade em saúde não afeta somente a cultura, mas todas as outras áreas também. No entanto, o próprio termo “Mens sana in corpore sano”, do poeta Juvenal, da Roma Antiga, mostra como uma atividade cultural criativa pode desafogar males do organismo.
Diversidade
Durante a conversa, Maleronka mostrou como as profissões de curador, programador e produtor se entrelaçam hoje. Todos no meio cultural acabam tendo de fazer várias funções, até mesmo os atores ou cantores que, teoricamente, só teriam uma incumbência específica: atuar ou cantar.
E no rastro dessa diversidade multifacetada, não há como dissociar a cultura da saúde e da educação. Educação é saúde. Saúde é educação. Cultura é saúde. Cultura é educação. E assim por diante como, muitas vezes, o curador é produtor, o produtor é programador e o programador é curador.
Se fosse para, como um jornalista esportivo, definir a posição de cada uma, diria que a cultura é a base que arma as jogadas para a saúde e educação. É o meia de ligação, o antigo ponta de lança, o número um dos tempos do técnico Zagallo.
Da cultura surge a criação. O autoconhecimento. A satisfação pessoal, o prazer da realização. Recentes números obtidos no Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica) e no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) mostram que, apesar de quase 100% das crianças estarem na escola, as informações que elas obtêm não são aproveitadas nas etapas seguintes, porque não há uma aprendizagem associada.
E a cultura é básica para a aprendizagem associada. Um jovem que toca algum instrumento, terá de começar a aprender a ler para se aprimorar. Ou entender o ritmo, aprendendo assim a contar, mesmo que intuitivamente. Ele vai se educando.
Uma criança que faz teatro, sente a necessidade de entender a alma de seu personagem. Utiliza, assim, um caminho literário. Vai se disciplinando em sua atividade, passando por uma educação física e mental. Um regime totalitário não sobrevive porque tenta sufocar a cultura.
Já eram quase 22h quando as conversas se encerraram. A fila diante do elevador fez alguns descerem pelas escadas de ferro, laterais. A luz da sala se apagou.
Mas os faróis lá fora, dos carros, continuavam a brilhar. Atravessariam a madrugada, no ritmo de cada horário, penetrando na sala silenciosa e dando sequência natural àquele debate. Com a música, a arte, a cultura, falando dentro de cada um, mais alto ou mais baixo. Até bem depois do amanhecer.
Fonte: R7
Foto: Rodrigo Lobo/Agência Estado